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quarta-feira, 31 de maio de 2017

O último pesar de um homem bom


Ricardo Gondim
As tragédias bíblicas fascinam. Sedução, vingança, amizade, heroísmo e traição permeiam as narrativas da Bíblia hebraica. Entre algumas, a história do soldado Urias, marido da famosa Betseba. Infelizmente, na maioria dos relatos, Urias não passa de coadjuvante na trama em que o personagem principal é o rei Davi. Urias –  o ofendido – fica, na maioria das vezes, com o papel secundário. A história tende a focar no mais forte. Quase nada é dito sobre o mero soldado.
Urias perdeu a vida estupidamente. Embora trivial no mundo antigo, o assassinato de um anônimo para livrar o rei contém desdobramentos complexos. A urdidura do homicídio merece ser destacada também a partir da perspectiva da vítima. A crueldade premeditada – uma das mais sórdidas da literatura universal – não pode se concentrar no sujeito que a praticou, mas na pessoa que a sofreu.
Aconteceu assim:
Em uma tarde qualquer, o rei passeava pela murada do palácio. Os olhos indolentes de Davi pousaram numa belíssima mulher. Seu nome era Betseba. Ela tomava banho. A pele morena, os cabelos negros, os seios bem delineados, somaram-se ao lusco-fusco e a situação ficou avassaladora, absolutamente sedutora. Davi não resistiu – ou não quis resistir.
Ordenou que o ajudante de ordens lhe trouxesse a mulher. Em uma sociedade patriarcal, que malbarata a mulher, Betseba seria mais uma a ser usada. A noite prometia delícias. Certamente, alguém com um mínimo de bom senso deve ter alertado o rei: Esta, não! Ela tem marido; e ele te reverencia, Majestade. Urias era soldado da tropa de elite. Alistado, encontrava-se em plena batalha. A guerra acontecia distante. Depois de usar Betseba, o rei omitiria a noite prazerosa. Não haveria grandes problemas. Urias nunca suspeitaria do rei. Assim, Davi se deixou levar pela sedução.
Com os riscos minimizados, a aventura se consumou. Abismo, entretanto, chama abismo. O pior aconteceu. Betseba engravidou. Davi precisou, urgentemente, gerir danos. Um escândalo se avizinhava. Virou prioridade real encobrir o malfeito. Davi planejou galardoar Urias com um improvável descanso. Supôs que o soldado recém chegado da batalha, com a libido à flor da pele, ficaria eternamente grato por gesto tão magnânimo.
A gravidez, ainda precoce, se dissolveria. O amor de uma lua de mel encobriria a gravidez. O rei imaginou que Urias perderia até a conta do número de relações sexuais naquela primeira noite. Certamente, os meses da gestação nem seriam contados. Além do mais, crianças também nascem prematuras.
Para o constrangimento de todos, o soldado recusou a oferta. Cara a cara com o próprio rei, afirmou: Eu jamais aceitaria férias e prazer enquanto meus amigos estiverem em perigoA Arca do Concerto, Majestade, representa tanto a presença de Javé como a honra de Israel. Não posso admitir que continuem sequestrados. A tua dignidade, Senhor, se encontra em mãos inimigas.
O rei orquestrou um segundo plano. O projeto continha requintes nefastos – mentes encurraladas conseguem se esmerar em torpeza. Davi tramou devolver Urias às trincheiras, mas antes ordenou que o marechal de guerra lembrasse de recuar no ardor da batalha. O soldado devia ser abandonado. Em posição vulnerável, certamente morreria. Na mente cruel do rei, quanto mais indefeso, melhor.
As tropas recuaram. Urias não teve como se esconder. Numa pontaria certeira, a lança inimiga o abateu. Um soldado, leal, digno, morreu. O rei sentiu alívio. Sua alegria foi do tamanho do império que desejava construir. Eu não matei ninguémAgora posso me casar com Betseba. Assumo o filho. Com tudo legalizado, continuo a tocar os negócios do reinoNinguém vai me incriminar. Posso voltar às demandas mais importantes da minha vocação imperial que, afinal de contas, veio de Deus. Vou expressar gratidão construindo um templo pra ele.
Qual o preço de tal bonança? O desespero de Urias! Quanto custou a paz de Davi? A desgraça de um comandante, que deu ordem para as tropas retrocederem! Ele deve ter voltado para casa se sentido um lixo. Para defender o cargo e não quebrar a hierarquia, sacrificou o amigo da tropa – vileza inominável para um militar. O mal, projetado como defesa, tende a ser atroz. O mal, perpretado por quem detém o poder, tem força letal. Um tirano, antes de matar, cria solidão.
Muitas vezes imaginei a dor de Urias. Seu desespero é comum. Em seu último suspiro, o que o soldado pensou? Como alguém se sente quando morre abandonado? Será que ele se deu conta de que poderosos se valem do idealismo como forma de induzir pessoas a se sacrificarem? Acreditando que defendem causas, muitos tombam desnecessariamente.
Quantos, iludidos, seguem para um matadouro semelhante ao do soldado bíblico! Quantos, abatidos, atinam? Eu não passo de peão no xadrez dos poderosos! Incentivados ao engajamento, movidos por ideiais, seguem para uma morte inútil. Marcham, imaginando defender uma bandeira, mas só cumprem caprichos. De repente caem sem amigos. Quando falta chão, acordam: Tudo não passou de um jogo de interesse. Deve ser horroroso perguntar no último fôlego: Por que vocês se comportam assim? Urias, certamente, não teve tempo sequer para entender que outros interesses motivavam o seu assassinato. Sua vida era gasta em vão. Ele só serviu para livrar um rei amedrontado – e bárbaro – da sua sujeira. A morte trágica de Urias expôs a bestialidade do rei e o servilismo da tropa. Mostrou também que a vida pode ser banal.
Alguns despertam tarde demais. Triste, dar-se conta da manipulação dos poderosos – e na derradeira visão ter os amigos de costas. Urias recebeu o baque. Agonizou sem entender o porquê de tamanho abandono. Sua morte, entretanto, ensina: maior dor não é ser morto por arma inimiga, mas expirar com o desdém dos companheiros. Mesmo que lhe contassem sobre a armadilha dos bastidores do palácio, o seu sofrimento não diminuiria. Nunca é fácil admitir que projetos institucionais sacrificam lealdades.
Não era para ser assim…
Mais tarde, Deus confrontou Davi. Mas isso é outra história.
Soli Deo Gloria

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